Aos perdidos no deserto.

Olá prezado navegante, o que o fez cair aqui neste ambiente árido e sem vida (quase nenhuma)? Este lugar não é pra você. Não estou querendo expulsá-lo, porém! Fique à vontade.

Deixe-me contar - já que está por aqui - o motivo da criação deste ponto no meio do nada de um mar de IPs e máscaras de sub-rede. Mas antes, acho que posso mencionar que este blog já teve alguns nomes: fl4v10, tremdeler, poráguabaixo e outros de que eu não me lembro. Porém acho o atual nome mais adequado já que não possuo seguidores e apenas eventualmente recebo a visita de algum incauto redirecionado por motivo que foge a minha compreensão. Entrou em uma trilha e se perdeu?

Volto à razão da criação do blog, se o senhor ou senhora ainda estiver aí, que reverbera vazios verbos - e artigos, e adjetivos, etc - ao vento arenoso dos bytes. Certamente, se o ilustre visitante escreve e se goza de relativa autocrítica e cuja vaidade não interfere excessiva, deve já ter jogado fora alguns de seus escritos. O problema disto é que se perde alguma coisa boa dentre as tantas coisas ruins. Perde-se também um pouco da própria história literária (ainda que questionável ou incipiente). Como vamos perceber que evoluímos se separamos só um pequeno texto que ficou bom? Neste sentido criei um depósito de meus escritos. Confesso que a intenção era também me forçar a escrever já que poderia - algo que não se concretizou - ter eco em algum leitor que seguisse este espaço.

Assim, sem mais, o espaço existe. E existe só para mim (na maioria do tempo). Caso queira sinalizar na areia um traço de presença humana, fique a vontade para deixar um recado após o sinal!! E obrigado pela visita!

BEEP.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Conto de Primavera.

O pássaro pousou na janela. O dia estava lindo, o céu azul. Um raio de sol pousava no chão após esbarrar delicadamente na cômoda antiga de madeira de lei que tinha o cheiro de uma época em que ela ainda não era nascida. As lascas na porta depositaram bolinhas de madeira no chão de tacos. Divertiu-se com a lembrança de que alguns deles estavam soltos. O forro do teto também era de madeira mas as paredes brancas que soltavam cal eram de tijolos. Os olhos já estavam se acostumando com a luz e as dores herdadas do chão duro em que havia dormido já não eram tão fortes. Vendo de baixo tudo era grande. Que bom que nenhuma barata ou outro inseto qualquer veio perturbá-la durante a noite. Tentou se mover e sentiu uma fisgada de dor nos pulsos e nos tornozelos. Não estava certo, a claridade de um dia como esse não combinava nada com a situação. Combinava talvez com um bom banho de mangueira e um passeio por estradas que levavam a belas paisagens e cachoeiras. Ficou quieta para não piorar a respiração ofegante. Adormeceu novamente.

Um vento refrescante a acordou e agora o pequeno pássaro amarelo, parecido com o que havia visto na janela, dava pulinhos no chão do quarto. Precisava de um banho, precisava comer, precisava de energia, precisava acordar. Só ouvia os sons da natureza e a paz que ela trazia. Saudade do barulho, das pessoas, dos pais, do abraço de seu namorado. Chorou e depois de algum tempo desistiu de chorar. Algo mais estava errado. Porque não voltavam com a bandeja? Porque não voltavam com a violência e com a invasão de seu corpo, de sua alma, de sua dignidade? Já se passavam dias. Dias em que teve medo, revolta, repulsa, esperança, dor, ódio, pavor, nojo, fé e por fim resignação e desistência.

Preferia as discussões, os berros e o stress. Desde que a abduziram da porta de casa, encapuzados e violentos aos gritos até o momento em que deixou o desconfortável porta-malas para vislumbrar a casa antiga no campo com seu jardim mal cuidado e rodeada por árvores, jamais havia ficado sozinha. Levavam bandejas com frutas, biscoitos e as vezes comida de micro-ondas. Levavam-a ao banheiro quando desejava. No principio se divertiam dando banho nela e depois – por perceberem que dava muito trabalho – deixavam-a tomar banho sozinha tomando cuidado de deixar a porta aberta. Havia também o abuso e a violência. Mas agora tudo havia cessado. Absolutamente tudo. Estava exausta, fraca e suja. Havia excreções e fedor impregnados em seu corpo. Não comia há dias. Poderiam eles terem sido presos. Poderiam ter sofrido um acidente enquanto saiam a noite para se divertir, confiantes de quem ninguém encontraria o cativeiro. Poderiam ter morrido em um tiroteio com a polícia ou fugido. Não sabia, só sabia que não havia ninguém. Não havia forças. Não havia nada. A não ser um lindo dia de primavera e um pássaro amarelo esperando para comer seus olhos.

sábado, 14 de julho de 2012

Entrevista

Passou os olhos sobre mim e antes que eu dissesse uma só palavra disse de forma tranquila e firme: você não serve.

Foi desagradável como um alimento indigesto engolido à seco. Me senti nu diante da recepção fria, arrogante e indiferente – porém antipaticamente educada – daquela entidade. Ainda esperou que eu começasse a esboçar algum 'm mas...' para ter o prazer de me cortar a fala. Olhou-me nos olhos, tinha um olhar cortante, um sorriso nojento de quem faz questão de mostrar que te considera lixo, os cabelos cuidadosamente cortados e penteados, nenhum vestígio de barba e vestido impecavelmente como um executivo. Completamente diferente de mim ou de como eu o imaginava antes de entrar naquela maldita sala. Podia agora concordar com o ditado que dizia que o diabo não é tão feio como pintam, mas o arrepio de estar diante dele era quase ensandecedor.

__Vou me dar o trabalho de explicar antes que comece com seu 'bla bla bla' e comece a me entediar. Você certamente achou que ia me impressionar com esses cabelos longos, essa blusa preta com a estampa de uma freira se masturbando com um crucifixo e esses spikes no pulso. Sei que isso pode ser um duro golpe pra você que provavelmente passou a vida inteira achando que era meu servo, o próprio “o adorador do diabo” que baboseira. Você é idealista e seu visual só demonstra que quer afastar os mauricinhos e construir algo por si mesmo sem precisar se enquadrar no que chama de “sistema”. Isso não me interessa meu jovem. Preciso é de alguém que saiba dissimular, fingir, tirar proveito da esperança alheia, usar o corpo, usar os sentimentos alheios, o sofrimento alheio, tudo em proveito próprio e em meu proveito, quero alguém popular, bem vestido e com palavras bonitas nos lábios para cativar as minhas ovelhas. Porque eu sou o lobo mau e você apenas uma ovelha desgarrada e que não pertence ao meu rebanho.

Quando saí daquela sala que devia cheirar à enxofre mas na verdade tinha um agradável perfume tão sutil que ainda não consigo identificar estava mais perdido do que quando entrei pois fui recusado pelo inferno e não há nada que me atraia no reino dos céus.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

A mãe de Lucas



A mãe de Lucas

O calor calmante se espalha da boca à garganta e em seguida aos pulmões como se fosse o efeito de uma respiração profunda em um momento de agonia. O prazer da consistência da fumaça e a sensação de uma leve tontura indica que a nicotina chegou ao cérebro já tão desacostumado da substancia. Fumava pela primeira vez em quatro anos. Pagou ao dono do bar e saiu a caminho do necrotério. Ninguém haveria de criticá-lo naquele momento.

Não sentia vontade de chorar, não sentia dor, mas uma ausência, um afastamento, o pensamento sempre longe, imaginando, cogitando, refletindo em uma singular nostalgia. Todos já estavam providenciando algo e ele só veio ao necrotério para trazer a roupa com que sua mãe seria enterrada. Com toda aquela confusão de atestado de óbito, ligar para os familiares, transporte intermunicipal, providenciar funerária, escolher o caixão, e todos os trâmites necessários Lucas a quem não se podia cobrar senso prático naquele momento ficou encarregado somente desta tarefa menor que realizara rapidamente antes de ir comprar seu cigarro. Já podia ir embora, mas por alguma razão não desejava fazê-lo. Talvez porque onde quer que fosse não conseguiria fugir da realidade incontestável ou talvez por querer ficar próximo da sua falecida mãe pois sabia que nunca mais iria vê-la. Sendo assim voltou ao necrotério, sentou-se no banco e ainda fumando seu cigarro começou a pensar sobre a vida daquela que viveria de agora em diante somente em sua memória e na daqueles que a conheceram.

Antes da internação às pressas na Santa Casa ela gozava de boa saúde com exceção dos resfriados esporádicos ou de alguma epidemia que as vezes se espalhava no verão. Era uma mulher contida em seus comentários e sempre preocupada em não causar magoas a ninguém. Não sabia dizer não e por isso estava sempre às voltas com os problemas dos outros. Com seu salário de funcionária pública ela e o filho nunca tiveram grandes dificuldades financeiras. Enfim a vida era boa, mesmo que um pouco longe da cidade natal que ficava aproximadamente a uns cem quilômetros de distancia. Lucas adorava quando vinham visitar os avós pois ficava até tarde da noite brincando com os primos, e agora mais velhos iam para nas festas e voltavam só de madrugada. Seu padrasto as vezes até lhe emprestava o carro. Hoje sua mãe reunia a família mais uma vez.

Sua gravidez foi um período de muito sofrimento e angústia. Com um filho nos braços e a desconfiança de todos se não tivesse conseguido a transferência sabe-se lá o que poderia ter acontecido. “Ninguém faz um filho sozinha” diziam os pais e irmãos. Era apontada na rua por desconhecidos e fofoqueiras. Era pressionada por todos os parentes preocupados que tentavam faze-la revelar qual era o problema o que ela estava escondendo. Porque não queria dizer o nome do pai? todos sabiam que ela não era uma mulher promíscua. Na verdade, se não houvesse a criança poderiam apostar até que ela era virgem. E ela era, mas dizer alguma coisa naquela situação só iria piorar as coisas. As vezes passava horas chorando compulsivamente. Foi um terremoto em sua família, para eles o fato era que ela não confiava neles para revelar a verdade. Poderia ela ter engravidado de um traficante, ou ter o pai fugido, ou ter sido violentada, ou ter feito sexo com vários homens e até, oh deus, com algum parente.

Em uma daquelas noites em que todos estavam reunídos na sala vendo TV, alguns cochilando no sofá, outros comentando a novela outros repreendendo os que estavam falando durfante as cenas, nos comerciais todos foram para cozinha e inevitavelmente o assunto veio à tona. Bombardeada por todos os lados com perguntas e com a indignação dos presentes ela, apesar de seu temperamento suave, explodiu em um grito animalesco e amaldiçoou-os. Em seguida gritou a plenos pulmões que todos eram hipócritas e bradou “porque é tão fácil acreditar em uma estória que aconteceu há mais de dois mil anos de uma mulher engravidou virgem de uma criança e ainda que esta criança era a salvadora do mundo mas não podem acreditar que eu engravidei sem ter relações sexuais com ninguém? Não usem dois pesos e duas medidas. Eu não sei o que pode ter acontecido, já ouví estórias sobre enxugar na mesma toalha, sobre privadas sujas de sêmen. Eu não tenho como saber e não vou inventar nada apenas para satisfazê-los, nem sei o que estou dizendo por favor parem de me atormentar” e desabou novamente em seu já habitual choro compulsivo. Depois disso foi unanime que este seria um assundo proibido na casa, mas o clima já estava pesado o suficiente. Porém a transferencia pouco tempo depois aliviou as tensões e ela sentia que cada vez que visitava sua família a tensão se dissipava um pouco mais.

Na sua morte certamente encontraria a paz de espírito que desejava. Se libertaria por completo da mágoa que a oprimia o peito. Pelo menos, depois de algumas sessões de análize, foi convencida a se perdoar e a seguir em frente, tendo a certeza de que (o que quer te tenha acontecido) nada fora culpa dela.

O banco ao ar livre do necrotério já estava deixando a bunda de Lucas quadrada. A binga do cigarro jazia perto da lata de lixo, mas não dentro dela. Ainda não queria ir embora, talvez comprasse outro cigarro e voltasse novamente para o banco de cimento para gozar do direito de se entristecer em paz. Antes que se levantasse uma mão se estendeu diante dele segurando um maço de onde saltava um cilindro branco.

__Fuma? - Perguntou o senhor de cabelos meio grisalhos
__Hoje sim. - Respondeu Lucas ao senhor que imaginou ser o responsável pelo necrotério.
Enquanto acendia o cigarro lembrou-se deste senhor parado à porta do necrotério observando-o durante um bom tempo antes de se aproximar. Não dera atenção na hora, mas também reparara no rosto pálido do homem quando foi levar a roupa de sua mãe. Parecia que ele estava assustado, parecia que havia visto um fantasma.

__Porque seu pai não veio com você? - perguntou o senhor antes de tragar profundamente.
__Ele foi buscar a família do meu tio que mora na roça – respondeu
__Hum. - confirmou sem expressão alguma.
__Na verdade ele é meu padrasto, não conheci meu pai. Mas isso não importa agora não é?
__Talvez importe – disse o senhor parecendo produrar um gancho para continuar o assunto. Deu uma pausa e como Lucas não disse nada, continuou:
__Já ouviu falar de catalepsia meu jovem?
__É uma doença que a pessoa parece que está morta. Já li sobre isso, algumas pessoas colocavam sinos nas covas para dar alerta caso acordassem em um caixão. - disse Lucas pensando se o assunto era proposital ou apenas para matar o tempo.
__Exatamente. Então acomode-se que vou te contar uma estória sobre um necrófilo, uma criança e uma mulher que morreu duas vezes. Meu filho...



domingo, 29 de janeiro de 2012

Crítica ao conto Furo no Futuro

Hoje um amigo de longa data postou uma crítica sobre o conto Furo no Futuro que li com o maior entusiasmo, não só porque ele repercutiu o conto mas também porque ele tem uma ampla experiência com literatura e certamente pode me dar uns toques sobre como melhorar a qualidade do material aqui publicado.

Aproveito a oportunidade ajudar a divulgar seu blog Letras Elétricas que já venho seguindo a muito tempo. Ler no computador e na internete é meio chato mas não sinto isto quando leio seus textos. Bom, confiram e me contem o que acharam. As críticas deste amigo me ensinaram muito sobre como melhorar um pouco meus textos que estão ainda muito longe da perfeição.

Segue o link da crítica -> http://letras-eletricas.blogspot.com/2012/01/encontrando-um-furo-no-futuro.html#more

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Furo no Futuro - Índice


Este conto foi escrito em Abril de 2010 e como o blog foi reativado resolvi publicá-lo. Vou fazer isto em partes para que não fique demasiado enfadonho para o leitor:

Furo no Futuro

Parte I
Parte II
Parte III
Parte IV
Final

Furo no Futuro – Final


Furo no Futuro - Final

Na delegacia:

__Barbosa, dá uma ajuda aqui. – disse o delegado – leva essa papelada lá pra cima que eu quero ouvir essa história aqui direito. Resolve o que pintar aí, fala que eu saí, sei lá, desenrola aí pra mim. – virando-se para Tales – você tem advogado rapaz?
__Não senhor
__Pelo visto você vai precisar de um. Agora preste atenção, quero que você repita o que aconteceu ontem à noite para que eu possa entender direitinho o que você está dizendo. Você estava em um encontro? Encontro de que?
__É que eu trabalho com Voip um sistema de voz sobre IP – disse Tales – este sistema funciona utilizado-se da internet ...
__Sei, o filho do Barbosa trabalha com isto, continue. – interrompeu o delegado
__Este encontro foi realizado como forma de promover nossa empresa na região.
O delegado pensou que não poderia deixar de confirmar com o filho do Barbosa se houve esse tal encontro ou não.
__Certo, e como você foi parar nessa tal festa em plena quinta-feira?
__É que um dos parceiros no nosso negócio, residente em Juiz de Fora me convidou para ir a este aniversário depois do encontro.
__A que horas foram para a festa?
__O encontro acabou às 16:00, meia hora depois já estávamos chegando ao local da festa.
__Não é meio cedo para uma festa?
__Foi o que eu achei, mais o Rogério disse que os convidados eram colegas de trabalho do aniversariante, que iriam direto do trabalho para o aniversário. De qualquer forma fomos praticamente os primeiros à chegar, o restante do pessoal só começou à vir lá pras cinco e meia.
O delegado fez apenas um breve aceno com a cabeça para que continuasse.
__Como moro em Belo Horizonte e não vinha à zona da mata desde minha adolescência não conhecia o local e nem qualquer das outras pessoas presentes nesta festa.
__Mas você certamente possui o endereço ou telefone deste amigo que o levou à festa.
__Sim – deu uma pausa depois continuou – fiquei meio quieto no inicio mais depois de algumas cervejas comecei à me enturmar e fiquei rodando entre os grupos que se formavam. Depois de algumas horas senti falta do meu colega e fui procurá-lo, mas ele já havia ido embora. Passavam das seis e meia e estava começando a escurecer. Ninguém se predispunha a ir embora, quanto mais a me levar ao centro para que eu voltasse ao hotel. Decidi que saberia ir sozinho, fiz meia dúzia de perguntas ao povo da festa e saí à pé decidido à pegar um ônibus ou um táxi para o centro. Saí andando pelas ruas que estavam quase desertas, as ruas parecem diferentes à noite. A iluminação pública era boa e eu estava arrependido de não ter ido ao banheiro antes de sair. Decidi que deveria fazer uma parada no próximo cantinho mais escuro que achasse, foi quando vi aquela casa abandonada.
__E como você sabia que era uma casa abandonada?
__Bom, pelo jardim. Ele estava coberto de mato, além disto, a porta estava entreaberta. Dava pra ver da rua.
__Certo, continue.
__Entrei pelo jardim mal cuidado e fiquei fascinado pela bela arquitetura do casarão. Havia uma pequena varanda em frente à porta frontal da qual saiam duas escadas formando uma espécie de pirâmide. Subi por uma delas e entrei com cuidado pela porta entreaberta e empoeirada.
__Você não estava apertado? Porque não se aliviou ali mesmo no jardim.
__Aquele jardim estava com mato alto e estava meio escuro. Podia ter algum inseto, cobra, ou outro animal. Além do mais eu estava curioso e fascinado pela casa. Queria ver como ela era por dentro. Só que quando entrei não vi muita coisa por causa da penumbra. Acendi o celular pra iluminar um pouco a sala cujas paredes estavam pichadas e prestes a desmoronar. Já estava com a bexiga doendo e resolvi finalmente me aliviar sem remorso, afinal percebi ao caminhar que pela irregularidade do piso este já havia sido totalmente danificado. Além do mais o cantinho que escolhi fedia mais do que banheiro público. Sabia que não devia me demorar, queria voltar logo à cidade, mas não consegui ignorar uma grande peça de louça imponente vista de relance dentro de uma das portas iluminada fracamente pela luz do celular. Era uma banheira que apesar de suja era linda. Fiquei imaginando-me mergulhado nela e quais corpos haviam tido o prazer de imergir nesta banheira. Certamente belas mulheres ou jovens com os hormônios à flor da pele.
__Podemos voltar ao assunto, por favor? – disse o delegado irritado com o prolongamento desnecessário do relato.
__Claro, claro – disse Tales meio envergonhado - depois de apreciar o objeto dei às costas para sair da casa e caminhei em direção à porta passando pela outra extremidade da sala por causa do desvio feito para observar a bela banheira. Foi quando literalmente tropecei em algo e caí. Só que não era algo e sim alguém.
__Mas você não estava iluminando o local com a lanterna?
__Celular. Com o celular. Mas a luz era muito fraca e o corpo estava encoberto pela quina de uma parede. O banheiro ficava ligeiramente dentro de um corredor.
__E o que aconteceu depois?
__Bom, eu fiquei apavorado com o que vi. Após sentir o cheiro de terra úmida devido ao abandono da casa comecei a apalpar o solo em busca do meu celular que havia se apagado com a queda. Levei um susto ao tocar em um corpo, achei que era um mendigo e fiquei com medo de que ele acordasse e quisesse me agredir. Por fim achei meu celular e quando o acendi e apontei para o pretenso mendigo, meus olhos não acreditaram no que viram. Minha espinha dorsal gelou-se de alto à baixo e vomitei expelindo grandes quantidades de cerveja e alimentos não completamente digeridos. Era o corpo de uma mulher, ou melhor, menina. Estava totalmente cortado, mutilado e ensanguentado. O susto foi tão grande que saí o mais depressa possível de perto daquela cena horrenda.
__Se foi de fato desta forma, porque não veio imediatamente à policia?
__Porque depois disto simplesmente apaguei. Não lembro de mais nada, até acordar em um hotel hoje às nove e meia da manhã.
__Sei. Você está meio enrolado rapaz.

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Jamais voltaria àquela cidade. Sua antiga vida não mais o interessava. Não tinha amores perdidos, assuntos mal resolvidos, saudades ou qualquer outra coisa que lhe prendesse ali. Queria deixá-la para traz junto com seu outro eu. Seguiria novamente seu caminho.
O culpado pelo hediondo crime da noite anterior já havia sido pego. Claro que o delegado havia ficado com a pulga atrás da orelha e não acreditava inteiramente no que Tales havia lhe dito, porém após uma ligação para a delegacia de Juiz de Fora tudo foi rapidamente esclarecido. O assassino havia praticado um crime passional e sido entregue para a polícia pelos próprios pais que já desconfiados da insanidade do filho não tiveram dúvidas ao entregá-lo às autoridades ao vê-lo chegando em casa com a roupa suja de sangue. Na delegacia confessou friamente o crime. O relato de Tales fazia certo sentido e não havia motivo para mantê-lo preso mesmo com a lacuna do que haveria ocorrido entre o incidente e o seu relato. Tales sabia preencher as lacunas, mas dizer isto ao delegado seria loucura. Se contasse uma história mirabolante como a dele jamais conseguiria convence-lo de qualquer outra coisa. Por mais coerente que fosse.
Após ser liberado finalmente lembrou-se de ligar para o escritório e permitiram-no que retornasse ao trabalho apenas na segunda-feira não seria um grande prejuízo afinal, tinha todo o fim de semana pela frente, mas desejava sair logo daquele lugar e voltar para sua vida normal, se é que ele era normal.

sábado, 14 de janeiro de 2012

Furo no Futuro - Parte IV


Furo no Futuro - parte IV
O metal frio desliza como se estivesse acariciando a pele da jovem. A blusa de malha havia sido rasgada e a calça jeans jazia em algum canto, a navalha agora não tinha obstáculos em seu caminho. Ele adorava aquela navalha, considerava-a uma peça rústica e sofisticada e por isso não havia resistido ao desejo de tomar posse dela quando seu avô morrera. Agora ela estava limpa e com uma lâmina nova em folha que ao deslizar sobre o corpo de Verônica deixava um suave rastro vermelho. Não havia para ele corpo mais belo do que o dela, seus seios eram do tamanho de peras e seus quadris traziam curvas sinuosas que o levavam à perdição. O toque da navalha tinha que ser suave para que pudesse saborear como um fino vinho que não se bebe aos goles.

Não havia sido como em seus sonhos, os mamilos não estavam enrijecidos e não haviam arrepios gélidos para embelezar o momento, afinal mortos não reagem nem sentem calafrios. Todavia os lábios estavam gelados e já um pouco enegrecidos pelo hálito da morte, e o pequeno rastro de sangue e o acariciar da navalha deixavam-no extremamente excitado. Penetrou pela ultima vez em sua amada, jamais havia sentido tanto desejo e prazer. Sujou-se de sangue e deliciou-se com isto. Deitou-a de bruços e após tentar incessantemente penetrar seu ânus acabou explodindo de prazer e espalhando seu sêmen por todos os lados.

Olhou à volta da velha e pequena casa abandonada úmida e cheia de mato. Haviam se encontrado ali diversas vezes para que o noivo de Verônica não desconfiasse. Não havia teto e nem porta e o mato encobria um pouco a parte frontal do refúgio. Definitivamente não poderia te-la deixado viva até o derradeiro momento como desejava.

Virou-a novamente e olhou seu rosto, amava-a e ela o rejeitara e agora ela estava morta. Recebeu de suas próprias mãos o veneno sem suspeitar misturado em um vinho barato, porém mais caro do que os que costumavam beber. Sentiu-se um pouco frustrado, queria cortar seus mamilos mais como eles não estavam enrijecidos não haveria graça alguma. Olhou bem para o rosto da amada para gravá-lo e em seguida rasgou de dentro para fora da boca a bochecha esquerda e pela primeira vez o sangue jorrou com força, foi então que percebeu que não estava preparado para aquilo, mais não se intimidou. Olhou para o corpo procurando algo que pudesse levar consigo. Gostaria de levar o umbigo, parte que mais gostava, porém não tinha como mantê-lo belo. Decidiu então levar apenas uma mecha de cabelo, cortou-a e partiu pensando que não há mais belo do que dominar a vida e nem mais prazeroso do que sentir-se poderoso ao fazer o que não é permitido.

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Um outro Tales acordou naquela manhã. Estava em um quarto desconhecido e de supetão lembrou-se da noite anterior e do que havia acontecido, pelo menos até certo ponto da noite, depois disso, nada. Onde será que estava? Para onde seu outro eu o haveria levado? Não ficaria esperando para descobrir, e também na fugiria mais. Sairia de onde estava imediatamente, direto para a delegacia. Eles tinham uma aterrorizante estória para ouvir.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

O anjo e a foice

O anjo e a foice

Pele suave em pétala alva
em teu veludo te sentir
luzes me brindem com tua forma
és o meu anjo um querubim.
Olhos que sorvem cada imagem
toques que sentem cada lugar
em meu mergulho febril viagem
alma do anjo à se turvar

Torpor divino êxtase puro
canção que rompe o que é real
os gritos que ecoam sobre os meus ombros
são melodias do ritual.
No corpo o delírio de cada sentido
torna a lembrança imortal
são fortes espasmos fluindo em rios
de uma sensação surreal

Enxadas e pedras flagelam teu corpo
o gume da foice irá te julgar
ceifando-te a vida jorrando teu sangue
aos pés dos juízes irá se curvar

sábado, 7 de janeiro de 2012

Furo no Futuro - Parte III

Furo no Futuro - Parte III

A escuridão da mesma rua de que Tales saíra há alguns minutos descortinou-se e Cláudia não viu qualquer sinal dele. Seus olhos percorreram a praça rapidamente e vasculharam cada recanto. Seguiu em frente induzida pelo hábito, afinal percorria sempre o mesmo caminho em direção à sua casa. Começou a se perguntar quanto tempo havia passado desde que tinha visto Tales. Alguns dias depois, começaria a duvidar até que o havia visto realmente e após alguns anos teria certeza de que era tudo obra da sua imaginação que a havia protegido da morte, por alguma intervenção divina e inexplicável. Mas no momento continuaria a procurá-lo sem saber que jamais o veria novamente. A história que sua tia havia contado ainda estava fresca em sua memória.

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“Hoje é apenas um furo no futuro de onde o passado começa a jorrar” – Raul Seixas.

O álbum de fotos estava no colo de Drica e havia apenas uma foto da época em que se formou. Todos os seus colegas de turma estavam na foto de um tempo em que praticamente todos estudavam juntos durante o ensino básico e fundamental.

__É esse aqui – disse Drica à Claudia – esse era o menino de que eu gostava. Nossa! Há quanto tempo não vejo essa foto, e quanto tempo se passou desde que a tiramos.

__E porque você disse que ele era estranho? Que coisas estranhas aconteceram com ele? – Perguntou Cláudia interessada. – Que babado fortíssimo.

__Na verdade, eu gostava dele justamente porque ele era intrigante. Jamais vi alguém mudar tão radicalmente em tão pouco tempo. Na verdade, parte da história que estou te contando, ele mesmo me revelou.

“Eu sempre tive minhas paixonites, mesmo durante a infância e sempre me orgulhei de saber reconhecer as pessoas, de saber como elas se sentiam e sempre tentava ajuda-las. Acredito que um misto entre esses dois sentimentos me fez gostar de Tales.”

“Ele era muito brincalhão e gostava de fazer as pessoas rirem, mas apesar disto era muito calado, custava a se soltar. Sentava-se sempre na primeira carteira, aliás, na minha sala todos já tinham cativos os lugares em que se sentavam. Se era repreendido por algum motivo, murchava imediatamente, quase chorava. Era super-inteligente, um C.D.F de carteirinha. Sempre tentava agradar e conciliar as opiniões, e justamente por isso todos gostavam dele. Porém não fazia sucesso com as meninas e os meninos não faziam muita questão de tê-lo como companhia.”

“Eu fazia-o de confidente e contava todas as minhas paixões e aflições, tratava-o como um diário vivo ou uma amiga. Ele por sua vez, também me contava suas aflições e medos, e eu adorava, porque sempre gostei de conhecer os mistérios da alma humana.”

__Foi ai que você soube que tinha vocação para psicologia? – Perguntou Cláudia.

__Bom, na verdade só fui me dar conta de que poderia fazer desta minha aptidão uma profissão vários anos depois. Mas essa é uma outra história. Onde estava?

__Você ouvia as escabrosas confissões dele – disse Cláudia em tom de deboche.

__Isso! – disse Drica esboçando um sorriso – Eram sempre aquelas questões de criança, a maioria delas reclamações sobre os pais e sobre os deveres de casa, ele era um profundo defensor da abolição de tarefas fora da escola, mesmo sendo um CDF. Mas um dia, ele veio com uma história que me impressionou muito, principalmente pela preocupação com que ele me contou o que se passava.

“Sua mãe pediu que entregasse um documento que seu pai havia esquecido em casa e como seu pai trabalhava na fábrica, no centro da cidade, ela entregou a ele o documento e anexou a ele um vale transporte. Tales chegou ao ponto uns cinco minutos antes e percebeu, pelo número de pessoas presentes que o ônibus ainda não havia passado. Como não conhecia ninguém para puxar assunto e era muito tímido decidiu sentar-se no meio fio, tomando cuidado para não molhar os pés na água que escorria parecendo uma miniatura de rio próxima a ele. Ficou olhando para o tal mini-rio e decidiu pegar uma folha que havia caído da árvore e colocar sobre as águas. Procurou colocar a folha delicadamente para que não afundasse, e ela começou sua jornada, como uma canoa em águas revoltas. Seus olhos perseguiram-na durante algum tempo e depois...” – Drica ficou muda em tom de suspense.

__Ah! Não faça isso. E depois o que? Hein? – Cláudia.

__E depois nada, branco, vazio, indefinição. Se preferir, morte. Segundo Tales ele deu um salto no tempo. – disse Drica satisfeita por ter conseguido gerar a expectativa na hora certa e ter conseguido causar o efeito desejado de revelação fabulosa.

__Como assim? Ele morreu? Ah, impossível. A não ser que você estivesse ouvindo a história de um espírito. – Cláudia novamente com tom de ironia e impaciência na voz.

__Certamente – Drica sorrindo – na verdade ele despertou de repente, sem saber direito quanto tempo havia se passado, sem saber quanto tempo havia ficado em transe. Ao olhar a sua volta percebeu que as pessoas não estavam mais lá e que estava sozinho. Não havia visto o ônibus chegar nem as pessoas saírem. Não havia visto nada, apenas acordou como com um estalar de dedos de um hipnotizador.

__Mais como isto é possível? É uma história realmente estranha. – Cláudia.

__Na verdade não sei ao certo. Já li teorias sobre este fato, mas nenhuma ainda conclusiva. Me lembro que na época fiquei fascinada pelo fato. Talvez isso tenha desencadeado uma série de coisas em minha vida, inclusive meu interesse por ele. – Drica com o olhar distante – Bom, só que o mais estranho aconteceu depois.

__Como assim? Não acabou? – Cláudia.

__Não. No dia ele ficou preocupado, mais relaxou depois de me contar. Eu disse que já havia acontecido isso comigo também e a nuvem de preocupação na cabeça dele acabou se desvanecendo. Foi uma mentirinha à toa. Só que ele teve estas rupturas por mais duas vezes. A segunda vez, uns seis meses depois, durou umas três horas, segundo ele. E na terceira, você nem sabe...

__Ah, conta logo sua chata. – Cláudia já nervosa.

__Bom, não sei se houve realmente uma terceira. Mais no nosso ultimo ano do ensino fundamental lá por meados de setembro aconteceu uma coisa curiosa. Tales chegou diferente em sala. Estava com um brilho fulminante no olhar. Sentou-se no fundo da sala. Olhava para as coisas como para certificar-se de que eram reais. Seu semblante revelava uma força ostensiva, jamais antes demonstrada e tornara-se mais expansivo. Parecia outra pessoa. E à medida que se passavam os dias esta mudança ficava mais evidente e definitiva. Começou a se envolver com problemas. Estava rebelde. Matava aula para ir tomar banho de rio. Cantava de forma agressiva as meninas da escola. Começou a beber. Alguns acharam que a adolescência havia chegado à Tales de supetão. Mais eu tinha outra teoria. Dizem que a dor e o sofrimento amadurecem as pessoas, e eu concordo com isso, porque trazem sabedoria e nos ensinam a lidar com os problemas mais também alimentam o superego de onde vêm nossos mais íntimos instintos. Minha teoria sobre Tales é que uma terceira ruptura aconteceu, e foi definitiva. Acredito que o Tales que conhecíamos não voltou, e que em seu lugar voltou outro, que talvez criado dentro de sua própria mente sentia-se ansioso e encarcerado por não poder desfrutar de tudo que poderia se não estivesse sujeito às restrições impostas por seu lado dominante e por isso resolveu assumir o controle.

__Nossa! E depois?

__Bom, depois sua família toda se mudou. Parece que decidiram que seria melhor para todos. Tales já estava criando problemas demais. Seus pais acreditavam que o problema eram as más companhias e que saindo de Cataguases eles teriam como controla-lo mais. Desta forma jamais voltei a vê-lo.

__As vezes eu queria sumir assim. – Claudia com o olhar distante.

__É, eu sei, todos nós às vezes queremos. Tenho notado você muito distante ultimamente. Sei que você tenta disfarçar. Espero que você venha mais aqui conversar comigo. Você sabe que eu estou sempre aqui não é? – disse Drica enquanto acariciava os cabelos longos da sobrinha.

__Está certo. Pode deixar que eu venho sim tia.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Furo no Futuro - Parte II


Furo no Futuro - Parte II
As manchas brilhantes eram como as sombras de Platão no mito da caverna. Representavam as luzes da cidade projetadas pelo álcool em sua retina. Mesmo assim a noite estava linda e da ponte de metal podia ver, mesmo que distorcidos, os faróis dos veículos que passavam pela outra ponte, essa de concreto armado e que conhecia muito bem do alto de seus 19 anos. Cláudia gostava muito mais de quando a ponte de metal era amarela como na foto do postal que tinha em seu quarto, mais ela agora havia sido pintada de branco, não sabia por que. Havia muita poeira no duto branco sobre o qual ela estava e teve que enxugar os olhos com as costas das mãos porque a grade de metal na qual se segurava também estava suja. Começou novamente a remoer a solidão e o tédio que sentia e a falta de perspectiva e esperança da sua vida medíocre e insossa. Como sentia saudade do litoral! O som do mar e o sal da água a tudo purificam nas mentes e nas feridas do corpo ou da alma. Porém ali, naquela cidade abafada, talvez só as águas do rio Pomba pudessem curar sua tristeza. E já que ouvia dos Anjos, “acostuma-te à lama que te espera”, não tinha a intenção de deixá-la esperando. Afinal, apesar de seu desolamento e tristeza, tinha que reconhecer que era uma bela noite para deixar-se cair na escuridão do rio e nunca mais voltar.

Um vulto passou à sua frente enquanto estava distraída ao preparar seu ritual mental de morte. Naquele instante, pouco antes do suicídio quando as pessoas buscam organizar seus pensamentos tencionando encontrar as frases certas para maximizar a sensação do derradeiro momento. Levou um susto tão grande que se desequilibrou e quase caiu no rio. Segurou firme com as mãos na grade e girou sobre o cano de metal chocando seu quadril com a ponte produzindo um estrondo metálico. Procurou como pôde voltar à posição original com taquicardia, o orgulho arranhado e a roupa toda suja. Apesar de toda essa pataquada o homem, distraído que estava, sequer percebeu sua presença. Seu rosto não lhe era estranho, mas não se lembrava de onde conhecia aquele homem que quase atrapalhara seu intento. Não haveria sentido algum em uma morte acidental àquela altura do campeonato. Não só furtaria completamente todo o sentido do ato, como também emitiria, com firma registrada, um irrefutável atestado de incompetência.
Subitamente lembrou-se de quem era o homem. Era o homem da foto, o amigo de infância de sua tia Drica. Era Tales, o tal sujeito da estória esquisita que ela havia contado. De repente perdeu a vontade suicidar-se. Para uma mulher, a curiosidade é uma força poderosa, capaz de prevalecer sobre quase qualquer outro desejo.

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Uma frase escrita em latim1 no alto da ponte chamou a atenção de Tales, como poderia ele não ter reparado na inscrição gravada na placa de metal e que provavelmente estaria lá há décadas? As sombras o impediram de ler a frase, mais sempre haveria um amanhã, em que certamente o sol brilharia iluminando tais palavras de uma língua para ele desconhecida. Esta era uma cidade estranha onde frases em latim, painéis de Portinari, obras de Niemeyer e a lembrança distante das avós Super-oitos2 enferrujadas pareciam esconder-se envergonhadas ao lado de palavras verdes3. Eram fantasmas de outra época que vez por outra saltavam sem motivo aos olhos assustando frequentemente os menos distraídos ao tempo e mais distraídos ao espaço.

Alguns passos após passar por um homem que regava cambaleante uma árvore com o líquido quente impregnado de álcool enquanto olhava para o céu na escuridão da rua mal iluminada, encontrou as luzes amareladas que vinham do chão e explodiam sobre o prédio da prefeitura da cidade. Notou de relance algo de estranho que não pode identificar imediatamente e subitamente olhou para as mãos, foi só então que percebeu que elas estavam encharcadas de sangue, assim como sua camisa marrom que por sorte era de um tom bem escuro e não realçava as manchas. Pensou em lavá-las no chafariz da praça, mais logo mudou de ideia, se alguém o visse chamaria muita atenção. Ao invés disto caminhou calmamente até o bar mais próximo, pediu para usar o banheiro e lavou as mãos sem maiores problemas. Notou ao enxugar as mãos que em seu bolso havia uma carteira e viu em seus documentos um rosto que não conhecia, mas por coincidência era o mesmo que o assustava ao espelho. Havia dinheiro e estava muito cansado, decidiu ir a um hotel ainda preocupado com a forma como teria sujado suas mãos de sangue.

1 Pacificusne est ingressus tuus? – É pacífica tua chegada?
2 Câmeras utilizadas nos filmes de películas.
3 Referencia à revista verde