A mãe de
Lucas
O calor
calmante se espalha da boca à garganta e em seguida aos pulmões
como se fosse o efeito de uma respiração profunda em um momento de
agonia. O prazer da consistência da fumaça e a sensação de uma
leve tontura indica que a nicotina chegou ao cérebro já tão
desacostumado da substancia. Fumava pela primeira vez em quatro anos.
Pagou ao dono do bar e saiu a caminho do necrotério. Ninguém
haveria de criticá-lo naquele momento.
Não
sentia vontade de chorar, não sentia dor, mas uma ausência, um
afastamento, o pensamento sempre longe, imaginando, cogitando,
refletindo em uma singular nostalgia. Todos já estavam
providenciando algo e ele só veio ao necrotério para trazer a roupa
com que sua mãe seria enterrada. Com toda aquela confusão de
atestado de óbito, ligar para os familiares, transporte
intermunicipal, providenciar funerária, escolher o caixão, e todos
os trâmites necessários Lucas a quem não se podia cobrar senso
prático naquele momento ficou encarregado somente desta tarefa menor
que realizara rapidamente antes de ir comprar seu cigarro. Já podia
ir embora, mas por alguma razão não desejava fazê-lo. Talvez
porque onde quer que fosse não conseguiria fugir da realidade
incontestável ou talvez por querer ficar próximo da sua falecida
mãe pois sabia que nunca mais iria vê-la. Sendo assim voltou ao
necrotério, sentou-se no banco e ainda fumando seu cigarro começou
a pensar sobre a vida daquela que viveria de agora em diante somente
em sua memória e na daqueles que a conheceram.
Antes da
internação às pressas na Santa Casa ela gozava de boa saúde com
exceção dos resfriados esporádicos ou de alguma epidemia que as
vezes se espalhava no verão. Era uma mulher contida em seus
comentários e sempre preocupada em não causar magoas a ninguém.
Não sabia dizer não e por isso estava sempre às voltas com os
problemas dos outros. Com seu salário de funcionária pública ela e
o filho nunca tiveram grandes dificuldades financeiras. Enfim a vida
era boa, mesmo que um pouco longe da cidade natal que ficava
aproximadamente a uns cem quilômetros de distancia. Lucas adorava
quando vinham visitar os avós pois ficava até tarde da noite
brincando com os primos, e agora mais velhos iam para nas festas e
voltavam só de madrugada. Seu padrasto as vezes até lhe emprestava
o carro. Hoje sua mãe reunia a família mais uma vez.
Sua
gravidez foi um período de muito sofrimento e angústia. Com um
filho nos braços e a desconfiança de todos se não tivesse
conseguido a transferência sabe-se lá o que poderia ter acontecido.
“Ninguém faz um filho sozinha” diziam os pais e irmãos. Era
apontada na rua por desconhecidos e fofoqueiras. Era pressionada por
todos os parentes preocupados que tentavam faze-la revelar qual era o
problema o que ela estava escondendo. Porque não queria dizer o nome
do pai? todos sabiam que ela não era uma mulher promíscua. Na
verdade, se não houvesse a criança poderiam apostar até que ela
era virgem. E ela era, mas dizer alguma coisa naquela situação só
iria piorar as coisas. As vezes passava horas chorando
compulsivamente. Foi um terremoto em sua família, para eles o fato
era que ela não confiava neles para revelar a verdade. Poderia ela
ter engravidado de um traficante, ou ter o pai fugido, ou ter sido
violentada, ou ter feito sexo com vários homens e até, oh deus, com
algum parente.
Em uma
daquelas noites em que todos estavam reunídos na sala vendo TV,
alguns cochilando no sofá, outros comentando a novela outros
repreendendo os que estavam falando durfante as cenas, nos comerciais
todos foram para cozinha e inevitavelmente o assunto veio à tona.
Bombardeada por todos os lados com perguntas e com a indignação dos
presentes ela, apesar de seu temperamento suave, explodiu em um grito
animalesco e amaldiçoou-os. Em seguida gritou a plenos pulmões que
todos eram hipócritas e bradou “porque é tão fácil acreditar em
uma estória que aconteceu há mais de dois mil anos de uma mulher
engravidou virgem de uma criança e ainda que esta criança era a
salvadora do mundo mas não podem acreditar que eu engravidei sem ter
relações sexuais com ninguém? Não usem dois pesos e duas medidas.
Eu não sei o que pode ter acontecido, já ouví estórias sobre
enxugar na mesma toalha, sobre privadas sujas de sêmen. Eu não
tenho como saber e não vou inventar nada apenas para satisfazê-los, nem sei o que estou dizendo
por favor parem de me atormentar” e desabou novamente em seu já
habitual choro compulsivo. Depois disso foi unanime que este seria um
assundo proibido na casa, mas o clima já estava pesado o suficiente.
Porém a transferencia pouco tempo depois aliviou as tensões e ela
sentia que cada vez que visitava sua família a tensão se dissipava
um pouco mais.
Na sua
morte certamente encontraria a paz de espírito que desejava. Se
libertaria por completo da mágoa que a oprimia o peito. Pelo menos,
depois de algumas sessões de análize, foi convencida a se perdoar e
a seguir em frente, tendo a certeza de que (o que quer te tenha
acontecido) nada fora culpa dela.
O banco
ao ar livre do necrotério já estava deixando a bunda de Lucas
quadrada. A binga do cigarro jazia perto da lata de lixo, mas não
dentro dela. Ainda não queria ir embora, talvez comprasse outro
cigarro e voltasse novamente para o banco de cimento para gozar do
direito de se entristecer em paz. Antes que se levantasse uma mão se
estendeu diante dele segurando um maço de onde saltava um cilindro
branco.
__Fuma? -
Perguntou o senhor de cabelos meio grisalhos
__Hoje
sim. - Respondeu Lucas ao senhor que imaginou ser o responsável pelo
necrotério.
Enquanto
acendia o cigarro lembrou-se deste senhor parado à porta do
necrotério observando-o durante um bom tempo antes de se aproximar.
Não dera atenção na hora, mas também reparara no rosto pálido do
homem quando foi levar a roupa de sua mãe. Parecia que ele estava
assustado, parecia que havia visto um fantasma.
__Porque
seu pai não veio com você? - perguntou o senhor antes de tragar
profundamente.
__Ele foi
buscar a família do meu tio que mora na roça – respondeu
__Hum. -
confirmou sem expressão alguma.
__Na
verdade ele é meu padrasto, não conheci meu pai. Mas isso não
importa agora não é?
__Talvez
importe – disse o senhor parecendo produrar um gancho para
continuar o assunto. Deu uma pausa e como Lucas não disse nada,
continuou:
__Já
ouviu falar de catalepsia meu jovem?
__É uma
doença que a pessoa parece que está morta. Já li sobre isso,
algumas pessoas colocavam sinos nas covas para dar alerta caso
acordassem em um caixão. - disse Lucas pensando se o assunto era
proposital ou apenas para matar o tempo.
__Exatamente.
Então acomode-se que vou te contar uma estória sobre um necrófilo,
uma criança e uma mulher que morreu duas vezes. Meu filho...
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