Furo no Futuro - Parte I
O medo é a noite da percepção. E talvez por isto todos eles se
aflorem quando ela chega. Tales anoiteceu sozinho naquela
quinta-feira e sozinho caminhava por uma rua desconhecida como também
eram os rostos e tudo mais que ele via. Ignorava seu destino e também
que era quinta. Sentia apenas a sensação de sair de um estado alfa
e aos poucos vinha tomando consciência de que de nada se lembrava
além do fato de que existia. E então, neste momento, o tal medo que
aflora à noite, fez gelar de alto a baixo seu dorso e apertar em seu
peito o hálito sufocante e gelado desta mal fadada emoção.
Embrenhou-se inadvertidamente pelos seus cabelos com os dedos
audaciosos empenhados no valioso trabalho de pesquisa. Mas nada
encontrou de esclarecedor. Sabia ele, não sabia como, que a amnésia
ocorre após um trauma físico ou psíquico, mas não havia sinal
qualquer de ferida a magoar seu corpo e nenhuma dor o afligia além
daquela causada pela sensação desconfortável de não saber-se.
Talvez então o trauma fosse psíquico, alguma notícia desagradável,
algum choque qualquer que o colocasse em estágio letárgico. Porém,
se desta forma fosse, porque estaria a caminhar sozinho por uma rua
desconhecida sem qualquer interlocutor a tentar acalmá-lo da trágica
notícia dada e que lhe causara tanto desapreço a ponto de fazê-lo
ter vontade de esquecer de tudo?
Talvez tivesse sido ele abduzido e devolvido ao mundo sem qualquer
traço de memória em uma rua desconhecida, afinal era assim mesmo
que ele se sentia. Rua desconhecida! É curioso como nossa mente
funciona, quando acordamos demoramos um pouco a sintonizá-la para
depois irmos lembrando-nos gradativamente das coisas. Quando dormimos
em algum lugar diferente demoramos-nos ainda mais tentando assimilar
a informação que saiu do cotidiano. Talvez Tales tivesse dormido
por muito tempo, pois sentia que sua memória estava voltando
gradativamente. A rua desconhecida, não era mais tão desconhecida e
apesar de não se lembrar de onde estava, sentia nela alguma
atmosfera especial, talvez pelas árvores que se seguiam enfileiradas
sobre o passeio ou pela disposição dos paralelepípedos por onde
passavam carros que nunca tinha visto e pedestres apressados
desafiando o transito.
Desta forma, o medo, que se potencializa na incerteza do futuro e
estende suas raízes para alimentar-se do desconhecido, vai se
desvanecendo diante da sensação, ainda que vaga, de que o mundo se
revela aos seus olhos e de que brevemente o reconhecerá após
afugentar a bruma que encobre suas ideias e enche de dúvidas sua
visão.
Um de-já-vu, sinal de mau agouro para alguns, o surpreende. A buzina
de um automóvel soa ansiosa atrás de um ônibus de rua que,
preguiçoso, acabara de parar em um ponto, distante do passeio,
bloqueando a passagem dos veículos. Uma pedestre gorda e desajeitada
atravessa apressada bem na frente do coletivo segurando sua bolsa com
um dos braços e os seios com o outro e entra na fila para entrar no
veículo. Tales aproveita e atravessa a rua de paralelepípedos em
direção à uma charmosa pracinha com uma espécie de memorial
arquitetônico em seu centro pensando que um de-já-vu é uma boa
notícia para um desmemoriado, é a mente dando sinais de vida. Mal
acabara de formular o pensamento e ao olhar à frente um flash o
atingira. No centro da praça havia um enorme painel a céu aberto e
no canto inferior direito uma assinatura a tinta. Portinari. Onde
mais haveria visto um painel de Portinari a céu aberto senão em
Cataguases? Era nesta cidade que Tales havia nascido e onde vivera
sua infância?
Ficou zonzo, atônico, desnorteado com a descoberta que emergia em
sua mente. Acabara de renascer para o mundo, sabia enfim quem era e
sua mente desenferrujara-se por completo em um fluxo de sinapses que
traziam à tona sua memória como em um filme. Só que este filme
também era sobre amnésia...
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