Aos perdidos no deserto.

Olá prezado navegante, o que o fez cair aqui neste ambiente árido e sem vida (quase nenhuma)? Este lugar não é pra você. Não estou querendo expulsá-lo, porém! Fique à vontade.

Deixe-me contar - já que está por aqui - o motivo da criação deste ponto no meio do nada de um mar de IPs e máscaras de sub-rede. Mas antes, acho que posso mencionar que este blog já teve alguns nomes: fl4v10, tremdeler, poráguabaixo e outros de que eu não me lembro. Porém acho o atual nome mais adequado já que não possuo seguidores e apenas eventualmente recebo a visita de algum incauto redirecionado por motivo que foge a minha compreensão. Entrou em uma trilha e se perdeu?

Volto à razão da criação do blog, se o senhor ou senhora ainda estiver aí, que reverbera vazios verbos - e artigos, e adjetivos, etc - ao vento arenoso dos bytes. Certamente, se o ilustre visitante escreve e se goza de relativa autocrítica e cuja vaidade não interfere excessiva, deve já ter jogado fora alguns de seus escritos. O problema disto é que se perde alguma coisa boa dentre as tantas coisas ruins. Perde-se também um pouco da própria história literária (ainda que questionável ou incipiente). Como vamos perceber que evoluímos se separamos só um pequeno texto que ficou bom? Neste sentido criei um depósito de meus escritos. Confesso que a intenção era também me forçar a escrever já que poderia - algo que não se concretizou - ter eco em algum leitor que seguisse este espaço.

Assim, sem mais, o espaço existe. E existe só para mim (na maioria do tempo). Caso queira sinalizar na areia um traço de presença humana, fique a vontade para deixar um recado após o sinal!! E obrigado pela visita!

BEEP.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

O matador de cães

O cão foi encontrado em uma lata de lixo pelo gari, afogado em sangue talhado. O gari não gostava mesmo de cães, aquelas criaturas que não podiam vê-lo correr. Eles que o assustavam com frequência ao passar próximo aos portões. 

O próximo foi encontrado em um terreno baldio. O sangue havia se espalhado pelo chão de terra e dava pra ver claramente o buraco na barriga do cão. Ninguém deu importância porque mesmo sendo uma cidade pequena de Minas, uma vila na verdade, os dois foram encontrados nos dois extremos da localidade.

Ah! Mas quando o terceiro, quarto e o quinto apareceram os comentários nos botecos eram constantes. Alguns brincavam perguntando se os cães haviam se transformado em petiscos pra tomar com pinga. Outros diziam que o homem que saia na calada da noite para matar os desafortunados indivíduos de quatro patas deveria ser carteiro que nutria ódio ou trauma desde infância. Uma briga aconteceu quando um velho, tio de um carteiro, não gostou da insinuação xingou o acusador além de ter derrubado a pinga do amigo na própria goela em sinal de protesto.

O que mais se queria saber nas rodas de conversa, dentro dos botecos ou na conversa sussurrada das fofoqueiras, era quem era o tal homem que matava os cidadãos caninos da cidade. Não se sabe por qual razão todos cismaram que o serial canicidar era homem. 

Porém, ninguém se importava muito com os cães mortos. Eram bons animais, não incomodavam tanto, mas na cidadezinha não havia aqueles grupos de protetores de animais e madames que ficavam enchendo a paciência de todo mundo. Até tratavam animais melhores que pessoas. Não davam a mínima pra uma criança faminta, mas alimentavam os bichos à pão de ló. Que importava se alguns cães estivessem morrendo? Claro, era postura decorosa dizer que era uma judiação. Mas todos tinham sua vida pra cuidar. Os bichos se reproduzem sozinhos. Hora ou outra apareceriam mais cães na cidade se estes acabassem. Cães não são ameaçados de extinção. 

Ademais, uma hora esse rapaz se cansaria de matar os bichos. O diabo era ficar curioso com o motivo da matança. Se bobear era uma missão nobre. Livrar os cães da agonia dessa vida de esmolar comida. Poderia saber o misterioso homem de doença passada pelos cães. Poderia os cães estarem matando a criação de codornas da vizinhança. Não, ninguém deveria julgar. Vai ver, qualquer hora dessas ele se cansa de bancar o matador. Ou sente que já é seguro deixar os outros cães livres pra viver a vida sem disputar com muitos outros a sorte do pão, ou osso, de cada dia.

E foi justamente o que aconteceu. Poucos outros cães foram mortos. Uns três talvez, ou quatro. Cinco no máximo, e o assassinio canino cessou seu ofício. O último foi encontrado por uma senhora gorda que com o susto de encontrar o defunto peludo no quintal de casa acabou por se esborrachar no chão. O grito trouxe o neto pra fora de casa que não deu conta de acudir o soerguer de tanto peso. O caso virou comentário no bairro. Acho até que o tombo foi mais comentado que a pouca novidade de mais um cão morto.

Se está se perguntando sobre a polícia eu te digo, na vila a polícia lida com assuntos de gente. Como os cães não eram de ninguém não havia reclamante. Que desperdício seria ocupar a estrutura do estado com inumanos. Não queremos desperdiçar a confiança e o dinheiro do povo.

Depois disso os cães que sobraram viveram em paz. Ninguém soube de fato quem era o tal homem. Tudo voltou à normalidade como anunciaram aqueles que puderam se orgulhar do "eu disse pra você" proferido em sabedoria de conhecimento da vida.


Bom, pelo menos até alguns anos depois, encontrarem uma adolescente sem vida embebida em sangue com um buraco no ventre não muito longe de onde foi encontrado o primeiro cão.

segunda-feira, 28 de março de 2016

Azul - Prólogo

Eu queria dormir, estava cansado, mas aqueles pensamentos ficavam girando em minha mente. Era meu ego, eu sabia, não queria ter raiva, não queria ficar pensando, só queria dormir. Mas ele me disse que eu não era racional, justo eu, não podia suportar esta ofensa. Ele é quem não era racional, ele ignorava toda a racionalidade, era ele quem definia o objetivo e agia de forma contrária, contraditória. Eu é quem devia dizer isso a ele. Mas se ele quer que eu faça o relatório, eu o farei. Um relatório inútil. Porque estou pensando nisso? Não queria pensar em nada. Eu as vezes fazia este exercício de não pensar em nada, apenas sentir. Ou pensava em algo bom, ou em um lugar interessante. Ou em alguém interessante, mas a mente resiste. Sinto a raiva enrijecendo meu corpo, meu semblante em ondas intermitentes. Meu pensamento gira e sempre volta na raiva. As vezes mesmo exausto passam-se horas sem que eu consiga dormir. Mas hoje o cansaço está vencendo, as paisagens e a roleta dos pensamentos, gostava de chamar assim, flutuavam e promoviam a desconexão com a realidade, e neste ínterim, quando acordava, percebia que estava quase dormindo. 

A roda d'água começou a girar, o rio estava calmo, os pés sentiam a terra. Agora entrava em um lugar fresco e com chão úmido de terra. Era um barracão feito de madeira e palha, havia muitas espigas de milho no chão. O cheiro de palha era bom, era hora de debulhar o milho, senti-lo nas mãos, no sono, no sonho, na mente, no relaxamento. A mente sempre acha uma forma de purificar-se, de atenuar os desprazeres pra não pifar. A prática da meditação pela manhã ajudava muito, desde que começara minha raiva não era tão frequente. Meu controle melhorara. Agora o barracão ficava cada vez mais escuro. Tudo parecia se esvanecer. Minha mãe estava lá comigo, meus avós já falecidos sentaram-se também. Meus tio-avô trabalhava num baleio de bambu. Trançava as tramas, tudo estava calmo, quase se apagando e se perdendo no sono profundo, profundo como a escuridão do barracão, tranquilo como o silêncio quebrado apenas pela água do riacho que passava ao lado... tranquilo... silêncio... profundo... sono... escuridão... 

Subitamente em um clarão tudo se iluminou, despertou, um clarão azul, minha cabeça parecia imersa em uma piscina ou banheira aquecida. Os contornos começaram a ficar nítidos, em contrastes em azul e preto. Era meu quarto, era onde eu estava, consciente, deitado, de olhos fechados. Mas ainda assim podia ver em nítido azul como se meus olhos estivessem abertos todos os cantos do quarto. Não precisava virar a cabeça, não precisava abrir os olhos. Não precisava caminhar nem focar, nem direcionar o olhar. Era como se visse tudo de uma só vez. O quarto todo em 360 graus. Mais do que isto, em todas as direções. Aliás, me dava conta agora, também fora do quarto e além das paredes. Tudo ficava menos nítido ao se distanciar, mas mesmo assim podia ver muito além do que a visão normal. Era um sentimento, uma sensação, uma visão azulada, um novo sentido, uma nova percepção. Ao abrir os olhos e acender a luz, pude perceber que não era um sonho. Algum sentido novo havia despertado, que me permitia ver de outra forma, em imagens que se sobrepunham às imagens captadas pela córnea e indo além. Que percebiam vultos. Que percebiam objetos ligeiramente diferentes. Mas uma leve lembrança dos pensamentos antes de dormir, uma leve pontada desses pensamentos ruins apagaram a chama azul. Devo dormir novamente. Conversaremos sobre a luz azul em meus olhos mais tarde...se ela voltar amanhã...

terça-feira, 9 de julho de 2013

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solidão é mundo sem gente
é agente sem todo mundo
é se descobrir diferente

é eco na casa. é ser invisível
é cogitar fazer o indizível

é prever um futuro sombrio
é viver na chuva e no frio
ser criança desprotegida fora da época
é escrever um poema sem métrica

quarta-feira, 8 de maio de 2013

O oco

Se oco ressoa abafado o desgosto do enfado,
molesta o espírito em um grito contido
e consome o sentido já disforme e sofrido,
de existir arrastando-se nesse mundo estragado.

sábado, 5 de janeiro de 2013

Ele

depois que a flecha atinge seu alvo, nada mais pode ser feito

Era um dia da semana qualquer, talvez um terça-feira e era por volta de uma da manhã. Eu assistia um filme que falava sobre um homem que saía pelas ruas destruindo carros e atirando nas pessoas diante de um drama pessoal qualquer. No intervalo fui ao banheiro e sem qualquer motivo tive uma crise de choro. Caminhei de um lado a outro da casa até que finalmente peguei as chaves do carro e saí dirigindo sem rumo. Quando percebi estava na estrada de Cataguases-Sereno em uma parte da estrada em que havia uma reta, que segundo diziam produzia um auto índice de acidentes, parei o carro. Desliguei os faróis e fiquei cerca de uns 40 minutos quieto, com o rosto encostado no volante. 

Estava em transe, agora eu sei. A neblina já tomava conta da estrada e quando levantei o rosto, ao meu lado, do lado de fora, na janela havia uma criatura alienígena com seu aspecto indefinível entre rústico e angelical, entre animal e vegetal. Fui envolvido por uma bolha de vácuo. Perdi o fôlego mas não era como me afogar pois nada entrava em meus pulmões apenas saía o ar. Não foi desconfortável. E então só existia a escuridão. 

Eu nem sabia que existia a luz. Eu era apenas uma criança. Uma pressão agia e fui arrancado da escuridão aos berros. Mudo, cego e surdo ao mundo mas sentindo dor, nas mais diversas intensidades, dor psicológica, física e sensorial. Eles nos olham e nos admiram, sentem ternura e nos protegem. Neste planeta é assim. Aí, dia a dia vai crescendo em volta de nosso corpo de criança um exoesqueleto. Uma mão gigante cai pesada provocando pavor e toda aquela massa difusa e espessa vai se fortalecendo. Esta espécie de armadura orgânica nos protege um pouco da dor, mas nosso aspecto deixa se torna mais rústico. Caminhamos por corredores, prédios, monumentos, ruas e cidades e indistintamente tudo é branco, claro, ostensivamente alegre ou colorido, limpo e brilhante. Não há qualquer rachadura ou imperfeição nas paredes e nos artefatos tecnológicos. Não se consegue mais ver a natureza profunda deste planeta, do meu planeta. Jamais consegui encontrar uma sombra ou um refúgio. 

Os olhos, que apesar de verem com perfeição todo o ambiente não distinguem nenhuma feição. Meus pares passam por mim sem foco, como uma câmera desregulada. As vezes ao tentar tocá-los eles se desfazem em fumaça. Mas alguns se tornam distinguíveis, reconheço suas feições e as vezes posso perceber o que eles pensam. Só que todos, invariavelmente após algum tempo voltam a desfocar-se e a perderem-se no meio dos rostos sem identidade. 

E assim vou atravessando a paisagem artificial num passo solitário e deixando crescer em mim a casca dura e feia que me afasta do perigo, só com ela posso lidar com a atmosfera violenta do meu planeta. Junto com ela cresce minha cognição e inteligência. Conhecimentos dos mais variados são aprendidos e um cérebro prodigioso potencializa-se. Entretanto a criança continua enterrada dentro da armadura. Está presa, vulnerável e triste. Ainda sentindo medo e dor, precisando de proteção. Só que quem olha não a vê sobre massa orgânica da armadura. Sonhamos um dia encontrar a escuridão e nos entregar a ela. Não é possível suportar tanta luz e beleza quando ocultam a verdadeira natureza de tudo e estes olhos não possuem pálpebras.